sexta-feira, janeiro 20, 2006

Existe uma Mulher de Holanda dentro de nós....

























Mar e lua
Amaram o amor urgente

As bocas salgadas pela maresia
As costas lanhadas pela tempestade
Naquela cidade
Distante do mar
Amaram o amor serenado

Das noturnas praias
Levantavam as saias
E se enluaravam de felicidade
Naquela cidade
Que não tem luar
Amavam o amor proibido

Pois hoje é sabido
Todo mundo conta
Que uma andava tonta
Grávida de lua
E outra andava nua
Á vida de mar
E foram ficando marcadas

Ouvindo risadas, sentindo arrepios
Olhando pro rio tão cheio de lua
E que continua
Correndo pro mar
foram correnteza abaixo

Rolando no leito
Engolindo água
Boiando com as algas
Arrastando folhas
Carregando flores
E a se desmanchar
E foram virando peixes

Virando conchas
Virando seixos
Virando areia
Prateada areia
Com lua cheia e à beira-mar

Chico Buarque

Compositor, intérprete, poeta e escritor, Chico Buarque é hoje uma referência obrigatória em qualquer citação à música brasileira dos anos 60 pra cá. Sua influência é decisiva em praticamente tudo que aconteceu musicalmente no Brasil nos últimos 35 anos, pelo requinte melódico, harmônico e poético que suas obras apresentam. Filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda, morou em São Paulo, Rio e Roma durante a infância. Desde criança teve contato em casa com grande personalidades da cultura brasileira, como Vinícius de Moraes (que viria a se tornar seu parceiro), Baden Powell e Oscar Castro Neves, amigos dos pais ou da irmã mais velha, Miúcha, também cantora e violonista. Em 1964 começou a se apresentar em shows de colégios e festivais e no ano seguinte gravou pela RGE o primeiro compacto, com "Pedro Pedreiro" e "Sonho de um Carnaval". Desde então não parou mais de compor e se apresentar, participando de festivais internacionais de música, atuando no programa O Fino da Bossa, da TV Record. Ainda em 65, musicou o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Melo Neto, que fez enorme sucesso no Brasil e na França, para onde excursionou, arrancando elogios até mesmo do poeta João Cabral, que admite só ter autorizado a utilização do poema por amizade ao pai de Chico. Com o Festival de Record de 1966 tornou-se conhecido no Brasil inteiro por sua música "A Banda", interpretada por Nara Leão, que conseguiu o primeiro lugar (empatada com "Disparada", de Geraldo Vandré e Theo de Barros). Sua participação em festivais foi definitiva para a consolidação de sua carreira. Fez sucesso com "Roda Viva", "Carolina" e "Sabiá", e defendeu ele mesmo suas músicas "Benvinda" e "Bom Tempo". Lançou LPs no fim da década de 60, fazendo shows na França e Itália, onde morou por aproximadamente um ano. De volta ao Brasil, fez música para cinema e gravou um de seus discos mais bem-sucedidos, "Construção". Várias de suas composições e peças de teatro tiveram problemas com a censura na época da ditadura militar, e chegou a usar o pseudônimo Julinho de Adelaide para assinar algumas de suas músicas, como "Acorda, Amor". No teatro, escreveu "Gota D’água" com Paulo Pontes, e a "Ópera do Malandro". Como escritor, lançou em 1991 o romance "Estorvo" e, quatro anos depois, "Benjamin". Depois disso voltou a dedicar-se à música, lançando "Paratodos" em 1993 e "as cidades" em 1999, ambos com amplas turnês pelo Brasil e exterior. Em 1998 foi enredo da Mangueira, que ganhou o desfile daquele ano.

"É o Chico das artes
o gênio, poeta Buarque,
Boêmio ."

Algumas das Mulheres de Holanda (trechos)

A História de Lily Braun- Edu Lobo - Chico Buarque


Nunca mais romance,nunca mais cinema,

Nunca mais drinque no dancing
Nunca mais cheese ,
nunca uma espelunca ,uma rosa nunca,
Nunca mais feliz


A mais bonita-Chico Buarque


Não, solidão, hoje não quero me retocar ,nesse salão de tristeza onde as outras penteiam mágoas, deixo que as águas invadam meu rosto, gosto de me ver chorar, finjo que estão me vendo, eu preciso me mostrar ,Bonita, pra que os olhos do meu bem, não olhem mais ninguém

Acalanto para Helena- Chico Buarque/1971


Dorme minha pequena, não vale a pena despertar,

eu vou sair, por aí afora
Atrás da aurora, mais serena

Acorda Amor -Leonel Paiva - Julinho da Adelaide/1974

Acorda amor, eu tive um pesadelo agora,

sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição, era a dura, numa muito escura viatura
Minha nossa santa criatura,
Chame, chame, chame lá, Chame, chame o ladrão, chame o ladrão

Ana de Amsterdam- Chico Buarque - Ruy Guerra/1972-1973

Para a peça Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra

Sou Ana de cabo a tenente, sou Ana de toda patente, das Índias
Sou Ana do Oriente, Ocidente, acidente, gelada, sou Ana, obrigada
Até amanhã, sou Ana, do cabo, do raso, do rabo, dos ratos
Sou Ana de Amsterdam

Bárbara- Chico Buarque - Ruy Guerra/1972-1973
Para a peça Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra

Bárbara: O meu destino é caminhar assim, desesperada e nua
Sabendo que no fim da noite serei tua

Anna: Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva
Acumulando de prazeres teu leito de viúva

As duas: Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais

Onde estou, onde estás
Meu amor vem me buscar

Beatriz -Edu Lobo - Chico Buarque

Olha , será que é uma estrela
Será que é mentira, será que é comédia
Será que é divina, a vida da atriz
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se um arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida

Morena dos olhos d'água- Chico Buarque

O seu homem foi-se embora, prometendo voltar já
Mas as ondas não tem hora, morena, de partir ou de voltar

Joana francesa - Chico Buarque/1973
Para o filme Joana Francesa de Cacá Diegues

Geme de loucura e de torpor,
já é madrugada
Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda
Mata-me de rir,
fala-me de amor
Sei de longe e sei de cor, geme de prazer e de pavor
Já é madrugada, Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda

Tatuagem - Chico Buarque - Ruy Guerra/1972-1973
Para a peça Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra


Quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas, mas no fundo gostas
Quando a noite vem ,quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, a ferro e fogo, em carne viva

Você vai me seguir- Chico Buarque - Ruy Guerra/1972-1973

Você vai me seguir,
aonde quer que eu vá
Você vai me servir, você vai se curvar
Você vai resistir, mas vai se acostumar
Você vai me agredir, você vai me adorar
Você vai me sorrir, você vai se enfeitar
E vem me seduzir, me possuir, me infernizar
Você vai me trair.


Outras Mulheres de Hollanda



As composições de Chico Buarque de Holanda, diz muito sobre como a mulher lida com o desejo, como expõe seus sentimentos e afetos e como se vê como companheira e amante. É possível fazer um catálogo de descrições de comportamentos apenas com trechos das letras de Chico Buarque.

Essa moça tá diferente
Já não me conhece mais
Está pra lá de pra frenteEstá me passando pra trás
Essa moça tá decidida
A se supermodernizar
Ela só samba escondida
Que é pra ninguém reparar
Faço-lhe um concerto de flauta
E não lhe desperto emoção
Ela quer ver o astronautaDescer na televisão
(Essa moça tá diferente)
A moça deste samba é independente, em estado puro parece não ser exatamente a especialidade de Chico.


Seis da tarde, como era de se esperar
Ela pega e me espera no portão
Diz que está muito louca prá beijar
E me beija com a boca de paixão
(Cotidiano)
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca
A minha pele inteira fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada, ai
(O meu amor)

Sensualidade, previsibilidade e receptividade são características da expressão afetiva dessa mulher .

A metade do seu olhar está chamando prá luta aflita
E a metade quer madrugar na bodeguita
Se seus olhos eu for cantar, um seu olho me atura
E outro olho vai desmanchar toda a pintura
Ela pode rodopiar e mudar de figura,
A paloma do seu mirar virar miúra

(Tanto Amar)

A santa, às vezes troca meu nome, e some,
E some, nas altas da madrugada
A rosa, garante que é sempre minha
Quietinha, saiu pra comprar cigarro
Que sarro, trouxe umas coisas do norte,
Que sorte, voltou toda sorridente
Demente, inventa cada carícia,
Egípcia, me encontra e me vira a cara
Odara, gravou meu nome na blusa
Me acusa, me acusa, revista os bolsos da calça
A falsa, limpou a minha carteira
Maneira, pagou a nossa despesa
Beleza, na hora do bom que se queixa, me deixa,
A gueixa, que coisa mais amorosa, a rosa
(A rosa)

Essas estrofes define mulheres que mudam de humor e de interesse como muda o vento; que expressam um afeto dual, onde o componente mental da curiosidade jamais deixa que a paixão predomine completamente. São muitas mulheres numa só. Como Chico Buarque tem Vênus e Lua em Gêmeos, esta é uma dimensão do feminino que ele sabe cantar muito bem.

Carolina,

Nos seus olhos tristes
Guarda tanto amor,
O amor que já não existe.
Eu bem que avisei, vai acabar,
De tudo lhe dei para aceitar,
Mil versos cantei pra lhe agradar,
Agora não sei como explicar...
Lá fora, amor!
Uma rosa morreu,
Uma festa acabou,
Nosso barco partiu...
Eu bem que mostrei a ela,
O tempo passou na janela
Só Carolina não viu.
(Carolina)

Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar

Com seu vestido decotado, cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para praça e começaram a se abraçar(Valsinha)

Chico tem um caminhão de músicas que cantam a delicadeza de sentimentos da mulher lunar - aquela que imagina mais do que faz, ou que, de tanto imaginar, não vive. Aquela que se guarda, que se protege, que muitas vezes perde o momento, imersa em nostalgias fantasmagóricas. não é difícil imaginar Carolina como uma moça de grandes olhos aguados - marca registrada da Lua - enquanto o tempo implacavelmente passa na janela.

Cantei, cantei
Jamais cantei tão lindo assim
E os homens lá pedindo bis,
Bêbados e febris
A se rasgar por mim.
(Bastidores)

Luz, quero luz,
Sei que além das cortinas
São palcos azuis
E infinitas cortinas
Com palcos atrás.
Arranca, vida, estufa, veia,
E pulsa, pulsa, pulsa, pulsa, pulsa,Pulsa mais.
(Vida)

Era previsível que, em algum momento, Chico cantasse a mulher cuja feminilidade (Vênus) se exteriorizasse de forma solar. Provavelmente, toda mulher com Vênus em Leão guarda dentro de si uma prima donna e sonha - mesmo que não ouse assumi-lo - com homens "bêbados e febris" a se rasgar por ela.

Todo dia ela faz tudo sempre igua

lMe sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café
(Cotidiano)

Cotidiano descreve cabalmente o comportamento da mulher dona de casa , o ambiente e as situações são bem terráqueos - Em vez de um palco, ela precisa de um espaço de produção, uma rotina na qual possa movimentar-se à vontade e manifestar sua perícia e precisão. O "sorriso pontual", a "boca de hortelã" e o afeto que se expressa por pequenos gestos utilitários são atributos dessa mulher .

E eu te farei as vontades,direi meias verdades
Sempre à meia luz,
E te farei, vaidoso, supor
Que és o maior e que me possuis.
(Folhetim)

Minha solidão se sente acompanhada,
por isso às vezes sei que necessito
Teu colo, teu colo, eternamente, teu colo
Quando te vi eu bem que estava certo de que me sentiria descoberto
A minha pele vai despindo aos poucos, me abres o peito quando me acumulas
De amores, de amores, eternamente, de amores
Se alguma vez me sinto derrotado eu abro mão do sol de cada dia
Rezando o credo que tu me ensinaste, olho teu rosto e digo à ventania
Ionlanda, Iolanda, eternamente, Iolanda
(Iolanda)

Chega a ser decepcionante, mas, entre centenas de letras, Chico não tem uma única que expresse de forma inequívoca o comportamento feminino . Aqui e ali, porém, flagramos comportamentos ou toques , como a disposição para a adulação e a lisonja da mulher de Folhetim, capaz de fazer seu parceiro pensar que é o maior e que a possui ( é especialista em agregar e jogar com a força do outro). Já a belíssima canção Iolanda , descreve a mulher que tem de capacidade de ser companheira e de dar suporte afetivo real. Iolanda é uma idealização do feminino.

O que será que será

Que dá dentro da gente, que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os ungüentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
(O que será)

O princípio feminino não precisa ser doce nem diplomático. Tem asperezas, tem arestas, tem pulsões que jamais aliviam. Os versos de O que será, descrevem de forma lapidar toda a diabólica agonia de um aspecto tenso.

Morena de Angola que leva
O chocalho amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho
Ou o chocalho é que mexe com ela.
Será que ela tá na cozinha
Guisando a galinha à cabidela
Será que esqueceu da galinha
E ficou batucando na panela
Será que no meio da mata
Na moita a morena inda chocalha
Será que ela não fica afoita
Pra dançar na chama da batalha.
(Morena de Angola)

Se nós,
nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu
(Eu te Amo)

Nas duas canções, dois momentos da alegre e extrovertida mulher , Chico também poderia ter cantado a filósofa, a mística, a moralista ou a ardente justiceira. Todas são personagens , mas a faceta que Chico parece preferir nestas canções é mesmo a mulher de alegria irreverente e desordeira, que tanto pode esquecer a galinha na panela quanto bagunçar o coração e a vida de alguém.


As jovens viúvas marcadas

e as gestantes abandonadas
não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem,
se conformam e se recolhem
Às suas novenas, serenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas
(Mulheres de Atenas)

A letra inteira de Mulheres de Atenas é uma aula. Troque-se o título Mulheres de Atenas por Mulheres Conformadas - eis o retrato da orgulhosa contenção, da rígida consciência de limites, do sacrifício do prazer imediato em nome de algo maior: o dever, o status, a reputação, as necessidades do Estado. Verbos encolher-se, conformar-se, recolher-se e secar.

Acontece que a donzela
E isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e cobre
Preferia amar com os bichos
(Geni e o Zepelim)

Geni nem é exatamente uma mulher (trata-se do homossexual de Ópera do Malandro), mas esta estrofe expressa uma característica marcante , que é a insubmissão aos símbolos ostensivos de status e poder. Esse ser pensa com a própria cabeça - custe o que custar.

É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
(Geni e o Zepelim)

Na mesma Geni e o Zepelim é possível vislumbrar outras características, agora definindo a mulher com a disposição sacrificial ou com a baixa capacidade de discriminação afetiva ,em aspecto tenso. Os versos apresentam uma sucessão impressionante de imagens : detentos, lazarentos, internato, velhinhos sem saúde, poço de bondade... Um inventário digno de figurar em qualquer manual , aqui a Geni é uma prostituta de bom coração.





Palavra de mulher Chico Buarque/1985
Para o filme Ópera do malandro, de Ruy Guerra

Vou voltar
Haja o que houver, eu vou voltar
Já te deixei jurando nunca mais olhar pra trás
Palavra de mulher, eu vou voltar
Posso até
Sair de bar em bar, falar besteira
E me enganar
Com qualquer um deitarA noite inteira
Eu vou te amar
Vou chegar
A qualquer hora ao meu lugar
E se uma outra pretendia um dia te roubar
Dispensa essa vadia
Eu vou voltar
Vou subir
A nossa escada, a escada, a escada, a escada
Meu amor, eu vou partir
De novo e sempre, feito viciada
Eu vou voltar
Pode ser
Que a nossa história
Seja mais uma quimera
E pode o nosso teto, a Lapa, o Rio desabar
Pode ser
Que passe o nosso tempo
Como qualquer primavera.
EsperaMe espera
Eu vou

" Um Rei que grita por nós".

Olé!!! Chico Buarque de Holanda.

"Chico Buarque de Holanda, não existe, é uma ficção, inventado porque necessário, vital sem o qual o Brasil seria mais pobre, estaria mais vazio, sem semana, sem tijolo, sem desenho, sem construção...... "

Ruy Guerra







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